terça-feira, 4 de agosto de 2009

Pequeno conto

A FESTA DAS CORES

O despertador tocou. Manuela se revirou na cama e constatou que era chegada a hora de levantar. Foi à janela e abriu as pesadas cortinas de lã que havia ganhado da mãe.
O brilho do sol cegou momentaneamente sua visão.
Quando tudo voltava ao seu lugar ela se deu conta da alvura de seu quarto e do tom hospitalar e lúcido que suas coisas possuíam, inclusive a malha e a calcinha que em conjunto com sua cama, suas paredes e seu ser a faziam se sentir cada vez menor. Deitou novamente.
Toca o telefone. Primeiro toque, segundo toque, terceiro toque...
Não havia nela nenhuma vontade de atender. Decidira-se pela ausência. Por um dia deixaria de existir. Não trabalharia, não falaria, não seria.
Toca novamente o telefone. Primeiro toque, segundo toque, terceiro toque...
A dor da ausência ainda pungia. Não falaria.
Mais uma vez toca o telefone. Primeiro toque, segundo toque, terceiro toque... A angústia começa a tomar conta da situação. Pode ser alguém importante. Será que algo aconteceu?Falar ou não falar?
Silêncio. Nada mais acontece. Desistência? Cinco minutos, dez, quinze. Pássaros cantam. Nada! A calma começa a perturbar. De repente... Toca o telefone.
Primeiro toque, segundo toque, terceiro... A carência grita; a dor da angustia começa a se esvair e com ela toda a força. Falar! Essa é a solução! Um grito, um desabafo, um fato.
Ela pega o telefone e o puxa pra junto de si. Espera poucos segundos, tempo suficiente para se recompor. Ofegante encosta o fone ao ouvido na expectativa de uma voz. O som ecoa. Não há ninguém além do tu-tu da rejeição. Finalmente o choro.
Toca novamente o telefone. Dessa vez, sem espera, agarra com vontade o fone e o traz pra junto de si. Ouve a respiração. Alô? Alô? Alô?...Nada. Na ultima tentativa a resposta. Alô...
Uma voz estranha ecoa do outro lado. Tudo bem? Uma pergunta.
Mais uma vez:
“- Tudo bem?”, ele pergunta.
“- Ahn?! Quem tá falando?”
“- Não responda minha pergunta com outra pergunta. Onde está sua educação? Eu perguntei se está tudo bem.”
A resposta inesperada abre espaço para uma reação inesperada. Aconchego e calor.
“- Não sei ao certo. Não sei nem se estou; quem dirá se estou bem.”
“- O que leva uma pessoa com uma voz tão doce a ver a vida de uma forma tão amarga?”
“- Quem é você pra me dizer que tenho uma vida amarga? Nem sei quem você é!”
“- Eu só pensei que...”
“- Não pense sobre o que você não sabe.”
“- Desculpe, eu só...”
“- Não, me desculpe você...” – um choro copioso é ouvido pelo estranho – “tenho andado um pouco nervosa. Não consigo me reconhecer. Tudo está tão pouco claro apesar da luz.”
“- Luz? Que luz? Do que você está falando?”
“- que o branco da minha vida escurece minha vista. É tudo tão branco. Quero morrer.”
“- Não diga isso. Você não merece.”
“- Você não sabe quem eu sou. Olha minha decadência... Estou desabafando com um estranho. Grande vida a minha. Ha, ha.”
“- Você está sendo rude de novo. Sou seu amigo.”
“- Sorry! É muito feio destratar os amigos que a gente faz por engano.”
“- Não faça isso. Não me agrida. Não sou culpado pela sua vida miserável cheia de luxo e mimo. Nunca te vi. Você não pode me culpar por não ser amada e muito menos querida.”
“- Tudo bem! Desculpa. Estou nervosa. Tenho que ir agora.”
“- Não vai!”
“- Tenho que ir...”
“- Por favor...”
“- Tenho que ir.”
“- Mas eu te amo!”
Mesmo sabendo que não era verdade, a idéia de se sentir querida a aqueceu e envolveu, seu sangue subiu a face e a coragem se fez em palavras:
“- Eu tenho que ir. Obrigada por tentar. Tenha certeza de que isso foi importante pra mim. Até um dia, quem sabe?”
Do outro lado da linha a voz emudeceu. Ele teve certeza de nunca a veria. Sua voz seria para sempre apenas lembrança. Sentiu-se vazio. Tinha agora, de certa forma, um elo com a pessoa amarga do outro lado.
Manuela nunca esteve tão certa. Abriu a gaveta, pegou o estojo onde estava seu kit médico e tirou de lá o bisturi. Olhou pela janela e se deu conta de que seu prédio era o mais próximo do céu.
Cortou os pulsos de forma limpa e cirúrgica. Até na morte o branco lhe acompanhava.
Olhou para o colo onde estavam as mãos e viu a mancha vermelha que se estendia ao longo do lençol. Finalmente a cor se fazia em sua vida.
Sorriu. A vida é realmente irônica. Desmaiou deixando para trás a mãe, o namorado com quem se casaria em data próxima, a carreira e o sopro que a animava. Foi em fim feliz.
Os pássaros cantam, os carros passam.
Depois de muita espera, finalmente é sábado.

2 comentários:

  1. Marianna, eu simplesmente adorei este seu pequeno-simples-grande conto e o adorei não só por ser isso, mas porque a partir dele se abriram as portas para a Paixão do Inferno que é pensar. Pois um telefone sempre toca no momento em que nos encontramos no vazio inumano - e graças a ele escolhemos um destino! No caso da protagonista a morte foi a sua saída, o seu clímax. Quando eu li que ela cortava os pulsos, me lembrei de um conto meu, "Ambrosia", em que a protagonista, Ursula, cortava os pulsos após ter a acidental visão do amor carnal entre um homem e uma mulher, e enquanto agonizava era violentada pelo próprio pai. Quando você o leu, me disse que eu era o novo Byron. Você não fica atrás. O seu conto narra a dor do susto que é viver.

    Rodrigo

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